A morte aproximava se por todos os lados, mostrando me a fraqueza do mundo.
Lutor saltou de um varandim para o outro. Costumava fazê-lo para se encontrar com Selene, a sua amada. O processo já era conhecido por ele. Escalava as sebes ao lado da varanda da sala, depois saltava dessa varanda para a varanda do quarto de Selene e lá perdiam se em paixões discretas a e silenciosas. Não fosse o pai e a mão de Selene ouvirem, severos e protectores de sua linda filha, prendada mais que tudo, cheia de pretendentes que eles escolheriam com cuidado, para fortalecer a sua posição social e económica.
Era então o amor secreto. Numa época cheia de protocolos macilentos, época de senhores distintos com os seus relógios de bolso e com as mentes repletas de ciência, época de mulheres belíssimas e puras, submissas aos homens e à moralidade que comanda a sociedade, montadas nas suas carruagens e protegidas pelos seus acompanhantes. Um mundo sem toque ou paixão. Um mundo seco e de tons pastel, sem vida, presos num quadro que vai envelhecendo.
Não era assim para Lutor, jovem apaixonado e sonhador, no início de uma carreira como escritor, sem reconhecimento ainda. Por isso sem grandes posses, filho de pais comerciantes de bens essenciais, nunca seria aceite pelos pais de Selene, que procuravam um pretendente abastado. E eles existiam aos montes, atrás de Selene, cheios de estilos treinados durante anos de ensinamentos de línguas mortas e artes da diplomacia, capazes de convencer um padre que deus não existe, se assim o necessário. Lutor não podia rivalizar tamanhas qualidades. Mas ele tinha algo que nenhum tinha. Criatividade única. Desenhava e escrevia como ninguém alguma vez tinha visto. Era o promissor escritor, diziam alguns eruditos. Infelizmente para Lutor, os intelectuais formados em grupo dificilmente deixam entrar alguém no seio da sua arte, com medo de os exceder, criticando o por isso sempre que podiam, mesmo sem razão, em gozo ridículo entre eles. Eram portanto elitistas e Lutor não pertencia a essa elite. Teria de ter alguém que o apoiasse. E esse alguém não existia. Nunca se interessara por politica. Apenas por arte e escrita, por histórias e por coisas antigas e poesia bela, capaz de retira-lo da sua realidade inútil, da sociedade vaga onde vive.
Selene veio recebê-lo, alegre e nervosa, à sua varanda de portadas amarelas e brancas. Lutar foi puxado por Selene para dentro do quarto, para ninguém o ver. As portas fizeram som nenhum a serem fechadas e estavam sozinhos no escuro, apenas com a luz do candeeiro da rua a iluminar ligeiramente o quarto pelas frinchas das portadas.
Beijaram se com toda a força e deram depois uma abraço forte e longo, para se certificarem que não era um sonho, que se encontravam mesmo ali, juntos. Deitados no tapete bege do quarto, trocaram novamente olhares e deleitaram se no amor que tinham um pelo outro. Após momentos de amor inebriante, deitados um ao lado do outro, abraçados, no quarto de tons pastel de Selene, decorado pelos pais e feito tudo a pensar a suposta personalidade que a sua filha teria, conversam sobre eles e sobre o futuro. Os quadros de Selene empreitam ao longe, no canto do quarto, com tons negros e assustadores. As mãos dela ainda tinham restos de tinta que não saíra. Os seus pais odiavam isso. Não era de senhora, como diziam tantas vezes. Mas ela não se interessava por isso e gostava de os irritar dessa maneira e de outras mais.
Lutor falou lhe das imensas escritas que tem escrito a pensar nela. Nos poemas cheios de amor e carinho mas também medo de a perder e de ficar novamente sozinho, apenas com os livros e os fantasmas que o assombram. Selene diz lhe tudo o que ele quer ouvir. Que vão ficar para sempre. Que serão um do outro para sempre e nada os afastará. Nem que tentem muito e tudo se destrua numa bola flamejante. Estarão juntos na mesma. Sempre. Sempre disse ela varias vezes e a palavra colou se à mente de Lutor, como uma folha molhada numa janela, esgotando o seu pensamento. Era isso mesmo que ele queria, não tenham dúvidas. Era ficar com Selene para sempre.
A conversa continuou, durante noite dentro, falando sobre arte e escrita, falando sobre a arte escura e verdadeira de Selene e sobre a escrita amedrontada mas genial de Lutor, uma conversa cheia de recantos escuros, tal como os quadros dela. E de como quando Lutor fosse um escritor reconhecido ele iria levar Selene para perto dele, longe daquela cidade cinzenta, e ela poderia expressar se artisticamente e ser livre. Percebiam se e conversaram por isso horas e horas. No dia seguinte, de manha cedo, Lutor saltou da varanda para as sebes e depois para o chão. Sem medo de se magoar porque se sentia o melhor. Estava cheio de sono, não tinha dormido nada e tinha por isso as olheiras de quem tinha passado a noite em claro. Ele dizia aos pais e aos poucos amigos que tinha ficado em claro mas sim a escrever e a filosofar. Era o seu trabalho, dizia, e não escolhe hora de chegada a inspiração, arrematava a seguir. Todos acreditavam e ele ria se, orgulhoso, do seu poder diplomático.
Na sala enorme, nessa mesma manha, passado pouco tempo da saída de Lutor. Os pais de Selene, ilustres mesmo ao acordar, sentados nos sofás de veludo, falavam da sua filha e do futuro da mesma e consequentemente do seu. Falavam e tagarelavam, sem nunca sair do mesmo tema. A filha. Comentavam que Selene era simplesmente muito rebelde. Que as suas artes não seriam bem vistas por todos da sua classe. Que ela teria de casar se com um jovem nobre, de uma família amiga e rica. Mais rica do que eles, quem diria! Sabiam da existência do jovem Lutor. Os seus espiões já lhes tinham informado da sua existência e não estavam contentes. Um desses mesmos espiões interrompe a conversa de forma intempestiva, com informações recentes e interesseiras. Informou os então que Selene tinha passado a sua noite com Lutor, mesmo ali no quarto dela, debaixo dos seus olhos. «Eu vi-o a sair do quarto dela hoje bem cedo, despediram se com um beijo longo e apaixonado», disse o espião, sempre olhando para o chão. Os olhos côncavos e negros, em contraste com a sua pele branca, do pai, arregalaram se de horror e ódio. Começou a pentear a sua barba branca com os dedos longos e mortificados de branco, de unhas longas e tratadas. A cara estreitou se com o apertar dos maxilares, enquanto pensava o que fazer. A mulher esperava o que sairia da mente do seu marido, tal como qualquer mulher submissa faria. Olhou de esgar para o espião e depois largou um suspiro de preocupação, agora que a sua filha não escaparia do ódio do pai.
Ele levantou então, com a bengala na mão e mandou o espião juntar três rufias quaisquer para dar uma lição ao rapaz impertinente que tenta roubar lhes a filha querida. A ela o que lhe aconteceria? Um castigo mais sentimental. Não poderia falar com ele, mesmo que passassem à sua frente. Estaria agora sempre vigiada e seria obrigada a fazer o que lhe mandam. Lá fora a chuva começava a cair e a lama lá fora sujava todos o que nela andavam por necessidade.
Lutor não conseguia esconder a sua alegria durante o dia que se prolongou até ás onze, quando se foi deitar. Escreveu imenso, poemas lindos e cheios de loucura de amor.
«Na noite inebriante de prazer indiscreto, o meu mundo colapsou.
Foi o fim e o início, a primeira cena e o genérico final.
A linda mulher de padrões magnéticos passeava se pelos meus olhos sem cessar, num carregar de emoções, num enlouquecer de sentidos.
Mas que diabo a colocou no meu caminho tão auto centrado?
Mas que louco me derrotou neste jogo de passos coordenados?
O passeio nocturno, de lua a ameaçar cheia mas de tonalidade amarela, compactuava com o seu charme inebriante até me derrotar.
Assisti ao seu corpo celeste brilhar demais.
O desejo que me soltou pensou no seu corpo, o pensamento que me acordou pensou na sua mente curiosa de saber, tal como eu, de tanto que me ensinou, numa só noite, fiquei eu de ensinar em muitas mais breves escapadelas rasteiras.
Demorei a adormecer, pensando na sua beleza, doce querela na minha alma.
Era ela, se não tão distante, que acabaria comigo, de uma forma serena.
Sim, porque é ela.
Sim porque é mulher.
Sim porque foi a escolha sem senãos.
Estou morto, estou vivo, estou alegre, estou perdido no tempo.
É o final de uma jornada. Quando começa outra?
Se for possível concretizar no mundo de barreiras invisíveis que nos percorre constantemente.»
Deitou se e adormeceu a sonhar com coisas belas. Via a vida com tons de vermelho e negro, púrpura e branco pálido. Era tudo gótico estilizado e bonito, perfeito. Seria assim para sempre, ele sabia que sim. Confiava que sim.
No dia seguinte, depois de acordar, Lutor segue para a sua rotina normal. Levantou se cedo e ajudou os pais no seu labor matinal. Depois seguiu para o clube de cavalheiros onde ajudava um velho escritor a escrever, agora que ele não conseguia cuidar das tintas e dos papéis, e muito menos escrever com as suas mãos oscilantes e a sua falta de visão, que lhe toldava tudo. Após essa ajuda, caminhou até casa. Almoçou com a família. Descansou um pouco em casa. Filosofou no pequeno café ali perto sobre a vida e os seus pormenores interessantes. Já final da tarde caminhou serene pelas ruas lamacentas, esquivando se de poças e das carruagens que salpicavam tudo de lama preta.
Perto de casa, distraído no seu mundo de sonhos como costume, não se apercebeu do que se preparava para acontecer à sua volta. Foi empurrado contra a parede e depois agredido com um murro no estômago com toda a força. Foi se abaixo mas umas mãos pesadas e fortes não o deixaram ir. Olhou para cima e viu a figura de três homens, diria mais, homenzarrões mal vestidos que o agrediam continuadamente com socos e palavrões do mais vil encontrados. Caiu no chão, no meio da lama, com o gosto de sangue na boca e sem fôlego nos pulmões. Já nem sentia dores nos golpes, o seu corpo estava cheio de adrenalina. Um deles cuspiu lhe em cima, com nojo. Disse lhe que Selene não é para ele. Que se meta com as prostitutas da cidade, não merece mais. Que se não ouvisse os conselhos sentiria a morte e a morte dos seus aparecer. E a morte não é bonita. O seu rosto branco iria destruir a sua família.
Ali ficou, sozinho, a chorar com dores e humilhação. A pensar no que fazer. Lentamente começou a odiar tudo e todos. Os que lhe bateram, os pais de Selene, os escritores elitistas, a lama com que estava coberto, o mundo e até ele próprio por não ser capaz de fazer mais nada do que baixar os braços. Levantou se devagar, de olhar louco e humedecido e deu passo ante passo até chegar à praça. Lá, com as roupas sujas e ainda cambaleantes, ele viu Selene e seus pais, passeando na sua carruagem, altivos. Selene olhou para ele com um olhar assustado e temente aos pais. Olhou para ele sem alma, cheia de pena, cheia de vontade de o ajudar mas impotente para o fazer. Ele também olhou para ela e viu os seus pais, com um sorriso acutilante, olhar para ele cheio de um orgulho bafiento. Sentiu se tão mal que quis morrer. Arrastou se até casa e ficou lá, horas e horas a olhar para o tecto. Chorou imenso e quis matar tudo e todos no mundo. Bebeu uma garrafa inteira de vinho e ficou se bêbedo e deprimido. Rasgou as coisas que havia escrito para Selene, as coisas bonitas e cheias de amor e escreveu coisas novas, com uma escrita tremida e contínua, coisas cheias de fúria e dor. Adormeceu lentamente, desgastado com tudo.
«Partes destroçando tudo em teu redor.
O meu coração é como cristais frágeis e tu destroças tudo sem pudor.
Peço te ajuda. Peço te que fiques porque me sinto afundar nas areias movediças que eu próprio criei e onde coloquei o meu pé.
Peço te que me dês a mão mas tu vais.
Vejo a tua sombra dirigir se para longe e tu com ela.
Choro enquanto me afundo, cada vez mais.
Sinto o desespero de não ter como fugir, de não ter escape sozinho.
Não!
Sozinho sempre fiz tudo e sozinho farei sempre tudo.
Serei a morte a vida hoje.
Salvar-me-ei a mim próprio, sem problemas ou indecisões.
Desenterro me das areias e caminho sozinho, as areias desfazem se como se fossem nada.
Sigo em frente destruindo tudo o que vejo.
Bons ou maus, belos ou feios, tudo destruído.
Tudo!
Porque hoje e sempre, caminho sozinho em direcção a um caminho longo e árduo. Sozinho nada me mete medo.
Sozinho nada me impede porque sou um colosso negro.
Deixando um buraco na realidade.
Um buraco apenas superado pelo que vou criando dentro de mim, tornando me cada vez mais negro.
Até desaparecer toda a luz em mim e apenas me restar um sorriso irónico na boca.»
A sua raiva era enorme e sonhou coisas horríveis e repletas de monstros e morte. Nessa noite o demónio visita o e conta lhe coisas, coisas más. Um demónio feio, vermelho, pequeno e de orelhas pontiagudas e olhar maléfico. Disse lhe que se quisesse ter Selene de volta teria de destruir todos os que o tentam impedir. Ela quer que o faças, disse ele. O demónio apoderou se dele, disse lhe maneiras de matar e fez lhe acreditar que seria o ideal
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